quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Um sobre escrever de meia-noite até quatro e vinte || 06/09

Meio-dia, presa dentro de um ônibus lotado. O calor insuportável da estação me fazia suar tanto que eu me perguntava se conseguiria chegar em meu destino ao menos apresentável, embora já soubesse a resposta. Sentia minha mochila pesando nas costas, assim como o ponteiro do relógio de pulso que fazia aquele barulho irritante (eu odeio) de tic-tac a cada segundo. Rolei os olhos e segurei minha vontade de pedir pra que a menina loira sentada na minha frente tivesse consciência e segurasse minha bolsa. Opa, a porta abriu. Observei o ônibus parar mais uma vez, fazendo com que mais umas seis pessoas se apertassem no meio daquele mar de gente que é transporte público em horário de rush.
Encarando a janela, vi uma fila de carros congestionados. Fiquei imaginando o que acontecia em cada carro espaçoso que estava ali, parado no meio da via. Pensando em cada casal brigando, em cada menina atrasada pro colégio e em cada criança brincando no banco de trás. Olhei pra as pessoas ao meu redor e dei um riso anasalado ao ver como cada um se virava do jeito que dava pra continuar dentro do ônibus, consequentemente pensando naquele clichê de filme em que o rapaz entra no transporte público, senta ao lado de uma desconhecida e começa a puxar conversa. Bem que eu queria participar de um desses clichês, onde não tivesse que me apertar entre várias pessoas pra esperar o ônibus alcançar minha parada no sol de meio-dia e meia. Não faço questão do garoto, só queria ter onde sentar.
O menino daquele colégio famoso (esqueci o nome, sinto muito) que estava sentado três lugares depois de mim levantou e puxou a cordinha pra descer, mas uma senhora se sentou na cadeira vazia tão rápido que eu nem vi a estampa desgastada dos assentos por mais de dez segundos. Olhei pra cima e suspirei, praguejando mentalmente contra o meu relógio. Do jeito que pude, peguei meu fone de ouvido na bolsa e sem querer vi o desenho que tinha feito dele na semana passada. Escondi o desenho em um caderno qualquer e agradeci a todas entidades divinas existentes pelo dia em que a pessoa que inventou o organizador de fone de ouvido nasceu. Coloquei o fone, fechei os olhos e deixei a música no modo aleatório. Ah, a Paz… Ou quase isso.
Alguém tinha decidido se apertar entre mim e entre o cara da agência de publicidade (ou era isso que dizia na camisa dele). O que foi, sem dúvidas, uma péssima ideia. Me preparei pra fuzilar o incoveniente com os olhos, quando percebi que já tinha visto o sujeito em algum lugar. Passei cerca de três minutos tentando lembrar de onde conhecia o garoto, quando percebi porque seu rosto era familiar. O cara do ônibus parecia com ele. Fitei meus pés pra disfarçar, e não pude deixar de soltar um sorriso irônico quando percebi que até o Vans azul no pé do desconhecido era igual ao dele. Em algum lugar do universo alguém estava rindo de mim.
Mais duas paradas, e ainda mais gente entrando dentro do ônibus. Me perguntei se em algum momento o motorista perceberia que era humanamente impossível colocar mais pessoas dentro daquele espaço e começaria a queimar as paradas, mas assim que o pensamento apareceu, uma resposta veio junta a ele: não. Alguém tocou em mim. Olhei pro lado. Era o menino que parecia até demais com o meu ex. Tirei o fone de ouvido e olhei pra ele com o cenho franzido. Ele me perguntou as horas, e eu vi que a camisa dele era de uma banda que eu costumava adorar. Olhei pra o relógio, e me assustei ao perceber que faltavam dez minutos pra uma hora da tarde. Respondi o garoto – que me agradeceu – e voltei a encarar minhas botas. 
Eu não conseguia olhar pra ele sem pensar que era um fantasma do meu passado me assombrando. O mesmo jeito de se mexer. Cabelo penteado do mesmo jeito. Pele clarinha. As mesmas olheiras superficiais. Não conseguia ficar parado. Se vestia tentando mostrar pra as pessoas que não ligava, mas ligava sim. Dava pra perceber pela combinação da calça escura com a jaqueta de jeans lavado e a camisa verde. Ele sabia sim o que estava fazendo quando pegou a roupa no armário. Se segurando pra não cantar, mas batendo o pé no ritmo da música que escapava por seus fones de ouvidos da Apple. No volume máximo. Assim como meu ex fazia.
Virei a cara pra o outro lado e comecei a encarar o cobrador, tentando tirar a imagem do garoto da minha cabeça. Fiquei com raiva daquele desconhecido por me deixar ainda mais preocupada com o que aconteceria naquele restaurante. Amaldiçoei a décima sétima geração da família dele (mentalmente) e continuei ignorando o projeto de Alex ao meu lado. Ver o verdadeiro Alex já ia ser complicado, não precisava de mais um pra me preparar no caminho.
Mais uns dez minutos e minha parada (finalmente) chegou. Desci com pressa e corri pra chegar no sinal a tempo de atravessar na faixa de pedestres. Cheguei tarde demais, então praguejei baixo e fiquei olhando as alamedas da rua enquanto uma música  daquela banda invadia meus ouvidos. Parecia que tudo conspirava contra mim, porque eu só conseguia pensar na camisa do garoto, em seus vans azuis e na droga do desenho escondido em algum lugar da minha mochila. Suspirei em negação, ajeitei minha camisa e atravessei a rua, andando no automático até a temakeria onde tinha combinado de me encontrar com ele. Ele mesmo, meu ex.
Sentei em um canto afastado e tirei meu celular do bolso. Liguei o 3g e mandei um whats pra o contato de Alex, que por algum motivo ainda estava no meu celular. “Você tem dez minutos pra chegar. Mais um minuto e eu vou embora”. Enviei. Li o texto e comecei a rir, imaginando a reação dele ao ler aquilo. “Eu já tou aqui. E você tá atrasada”. Olhei pra os lados, procurando aquele rosto conhecido. Encontrei aquela jaqueta de couro no meio das mesas assim que olhei pro lugar. Com o sorriso debochado de sempre na cara, Alex estava me encarando do outro lado do restaurante.
“Eu não vou até aí, se quer saber”. Digitei rapidamente e enviei, o encarando de volta com uma sobrancelha levantada. “Se você quer assim… ”, respondeu. Soltei o celular na mesa e suspirei. Ele era doente. “Então eu peguei meu ônibus pra isso? Sério?” “Aparentemente sim.” “Quantos anos você tem, treze?” “Vinte e sete. E você?” “Vai à merda.” “Você que chegou atrasada. Você que tem que vir até aqui.” “Sinto muito se o ônibus se atrasou. Não tenho um motorista particular, sabe como é.” “Você sempre chegava atrasada, sabe? Quando a gente namorava.” “Então agora você se importa?” “A pergunta não é essa. Você se importa?” “Pelo amor de Deus, Alex. Levanta daí e vem até mim uma vez na sua vida.” “Mardy Bum” “Sério? Eu sou a Mardy Bum agora?” “Bem, é o que parece.”
Alex band guy enviou um arquivo de áudio.
Tirei os olhos do celular e olhei pra ele arqueando ainda mais minhas sobrancelhas. “Você se gravou cantando? Isso é o que eu tou achando que é?”, digitei indignada. De resposta ele só olhou pra mim e deu de ombros. “Você é inacreditável” “Sim. Você costumava gostar quando a gente tava junto” “Não era irritante quando a gente tava junto” “Te dou dez reais se você olhar nos meus olhos e dizer que acha irritante agora.” “Ajudaria muito se você viesse até aqui.” “Não mude de assunto” “Eu não estou mudando de assunto” “Eu vou até aí se prometer que vai me dizer isso sem balbuciar” “Pode vir, band guy” “Já é Band Guy de novo? Achei que me odiasse” “Vem antes que eu desista, caralho” “Indo”.
Coloquei o celular na mesa e encarei o teto vermelho. Aquilo não daria certo. Eu nem mesmo sabia por quê tinha aceitado ir, pra ser sincera. O que eu fazia ali, afinal? O ambiente era ok, é claro. A comida dali era ótima. Tinha uma música legal, não podia negar. Mas por que caralhos eu aceitei ir até aquela temakeria com Alex?
– Eu estou esperando. – ouvi a característica voz rouca me despertar de meus devaneios.
– Decidiu agir como um adulto? – perguntei em meu tom mais sarcástico.
– Já era a hora. – respondeu simplesmente, e chamou o garçom pra fazer o pedido.
– Eu tenho perguntas. – falei com toda dignidade que consegui reunir.
– Evidentemente. – assentiu com a cabeça e começou a bater os pés no ritmo da música que saía do rádio.
– Primeiramente, o que tinha na gravação?
– Eu. Cantando Mardy Bum. Pra você.
– Eu tou falando sério.
– Oh there’s a very pleasant side to you, a side I much prefer–
– Alex! – cortei sua tentativa de me ganhar com música. Não ia ser tão fácil assim pra ele.
– It’s one that laughs and jokes around, remember cuddles in the kitchen, yeah, to get things off the ground and it was up, up and awa–
– Alex… – Murmurei cobrindo os olhos com minha mão. 
– Oh, but it’s right hard to remember that on a day like today when you’re all argumentative, and you’ve got that face on.
– Por quê? – perguntei, o encarando firme.
– Eu te chamei aqui hoje porque eu preciso pedir desculpas.
– Não foi um bom começo.
– Pelo amor de deus, foi só uma briga!
– Alex, não foi só uma briga. Você sabe disso. Foram várias.
Os temakis chegaram e eu me concentrei em comer olhando pra a mesa, sem me preocupar em ser covarde. Sem me preocupar com o fato de estar ciente do olhar arrependido que ele me lançava do outro lado da mesa. As coisas não eram assim. Ele não podia cantar um trechinho, dar uns sorrisos e pedir desculpas. Não hoje.
– Por que não? – perguntou, surpreendentemente, sem sarcasmo nenhum na voz.
– Porque você já fez muita merda. Eu não sei se aguento mais.
– Eu não faço mais. Eu me controlo. Eu te amo. Você sabe disso.
– Tinha um cara igual a você no ônibus hoje.
– Sem mudar de assunto, baixinha.
– Baixinha não.
– Você ainda me ama?
– Evidentemente.
– Então você admite que não acha irritante?
– O projeto de Alex no ônibus era bem bonito, pra ser sincera.
– Tão desesperada que procura versões minhas por aí, Lauren?
– Pra você ver. – dei de ombros.
– Volta pra mim. – pediu, ignorando minha cara de espanto e minha reação (eu só fiquei parada, sem saber o que fazer).
– Alex… – olhei pra ele sem saber o que dizer.
– Eu te amo. Eu te amo pra caralho. Não vai embora, por favor.
– Eu também te amo, cacete.
– Então por que não quer voltar? – perguntou, com a característica marca entre as sobrancelhas de quando não entendia algo.
– Eu não aguento mais. Toda vez que a gente acaba eu fico um lixo, procurando seu rosto em todos lugares que eu vou. Eu choro por semanas e parece que seu nome me persegue. Eu não quero mais isso,  Alex.
– Não vai acontecer mais. – disse rapidamente, com o jeito meio desprendido dele. Dei um riso anasalado e levantei as sobrancelhas.
– Não? – perguntei, esperando saber o que ele iria dizer.
– Não. Eu te peço em casamento agora, se não acreditar.
– Pelo amor de Deus! – exclamei quando ele se levantou e se ajoelhou na minha frente.
– Lauren Brynn, você quer se casar comigo? – perguntou, tirando um anel do bolso. Era o nosso anel de namoro. Por reflexo, olhei pra sua mão direita. Ele não tinha tirado o dele.
– Alex, você é um idiota. – falei rindo.
– Você gosta.
– É, eu gosto.
– Isso é um sim?
– Eu não vou me casar com você…
– Lauren… – me olhou apreensivo.
– … Não agora.
– Isso é um sim?
– É um eu te amo. O mais sincero de todos que eu já te falei. Serve?
– Sim. Serve. – disse com um sorriso no rosto, enquanto colocava meu anel de prata no meu dedo. Depois ele se levantou, juntou nossos rostos e me beijou. Uma vez. Duas vezes. Três vezes. Várias e várias vezes, e eu nunca me cansava. Nem ele.
Essa semana passei na livraria daqui de perto e vi o cara do ônibus. O nome dele é Charlie, e ele tem vinte anos. Ele não parece com o Alex por acaso, mas sim porque os dois são da mesma família. Eu não entendo nada sobre chances, mas eu tenho certeza de que as disso acontecer com alguém são muito baixas. 
No fim, o vans azul que o Charlie usava não parecia com o do Alex. Era o dele.

Rodas-gigantes e celulares | @lauren\alex | 21/09

Parque de diversão cheio. Várias pessoas cantando e dançando contagiadas pelo som que saía alto das caixas de som gigantes no palco principal, onde uma espécie de banda folk cantava alguns de seus sucessos. Fim de tarde, daqueles bem demorados. Cheio de gente. Gente rindo e jogando água pra cima pra disfarçar o calor e gente tentando sair do meio da multidão. Ah, e gente feito eu, que não conseguia esperar pra entrar na roda gigante e ver tudo lá de cima. Eu sempre tive uma relação conturbada com o céu, embora nunca tenha descoberto o porquê. Toda vez em que eu fiquei um pouco mais perto da lua e das nuvens, eu me senti melhor. Como se finalmente tivesse encontrado o meu lugar.
Por isso, estava sozinha na fila esperando a minha vez de ter a sensação maravilhosa de estar acima do mundo. Meu amigo tinha ido comprar uma água com a namorada (sei…) e me deixou lá. Eu não me importei, é claro. Já era bem normal, pra ser sincera. Isaac e Jane sempre foram do tipo de casal que gosta de fugir de vez em quando pra se pegarem em algum canto. Nenhuma novidade.
Olhei pra o relógio entediada e tirei o celular da bolsa pra conferir a mensagem que o Isaac tinha deixado. “A fila de comida tá enorme, provavelmente vou demorar. Qualquer coisa me manda uma mensagem, love ya”. Sorri, respondi que estava tudo bem e me concentrei em dar mais uns passos pra não perder o meu lugar.
A banda que estava cantando (não conhecia, mas tinha um som bom) fez um cover da minha música preferida. Comecei a cantar inconscientemente, sendo completamente possuída pelo momento.
Não consegui me segurar, e comecei a cantar sozinha. Fechei os olhos e girei, o que, basicamente, foi uma terrível ideia. Esbarrei em várias pessoas. Um dos caras  em que eu esbarrei sorriu pra mim. Olhei pra ele e sorri de volta. "I’ll follow you into the park, through the jungle through the dark, girl I never loved one like you." 
A fila começou a andar aos poucos, e a banda continuou a tocar a música. A loira da frente entrou e o ruivo lá de trás tentou furar a fila. Minha vez chegou, e o Isaac não tinha chegado. O segurança me perguntou com quem eu ia. Fiquei sem saber o que dizer. O cara em que eu esbarrei (ele estava atrás de mim) se ofereceu pra ir comigo, porque o amigo dele também não tinha chegado. Assenti com a cabeça. O que poderia dar errado?
Entramos em silêncio, e que ele me perguntou meu nome. “Lauren. Lauren Brynn.” respondi. Ele se chamava Alex. Não perguntei o sobrenome, porque simplesmente não era necessário. Comentei que aquela roda-gigante era incrível, e ele comentou que a música que estava tocando. Começamos a conversar sobre a música, sobre o pôr-do-sol e sobre o parque em si. Descobri que ele também estava ali com um casal (e que eles também tinham deixado ele na fila sozinho), e ri internamente com isso. Ele me falou que tinha uma banda (e que um dia, ele estaria ali em cima do palco cantando) e nós começamos a rir. Disse a ele que quando isso acontecesse eu estaria lá pra oferecer suporte moral e ele assentiu.
A roda começou a girar e nós continuamos conversando, enquanto a sensação de estar em casa me invadia. Minha casa era o céu, e só. Comentei como adorava ficar fora de terra firme. Ele riu e concordou, dizendo que não tinha nada que gostasse mais do que a sensação de olhar pra baixo e poder ver as coisas tão pequenas e insignificantes. Como adorava poder entrar em um avião e ver que as coisas só dependem do seu ponto de vista. Olhei pra ele assustada, porque eu tinha falado isso pra o Isaac há cerca de dois dias. "And in the streets you run afree, Like it’s only you and me, Geeze, you’re something to see!
–  Você não é daqui, é? –  perguntou, rindo.
–  Não. Sou de Leeds, mas moro em Londres. E minha família é de Nothampton. –  respondi, sabendo que tinha descoberto pelo meu sotaque. Eu nunca consigo esconder. – Você também não é daqui, é?
– Não, eu sou de Sheffield. 

Perguntei sobre a banda e ele me disse que tinha começado há cerca de três anos, e que as letras eram consideravelmente conhecidas. Falei que, vestido daquele jeito, eu podia facilmente confundi-lo com uma estrela do rock. Ele levantou as sobrancelhas e riu de lado, dizendo que ia se lembrar disso caso algum dia virasse uma. Ficamos em silêncio por mais um tempo (o que não foi constrangedor, porque o pôr-do-sol era suficientemente incrível pra calar a boca de todo mundo), e a roda só ficou lá, girando. “Ahh Home. Let me go home. Home is wherever I’m with you. Ahh Home. Let me go ho-oh-ome. Home is wherever I’m with you”
Se passaram uns três minutos, e o meu tempo ali em cima acabou. Esperei por minha vez de descer, e quando a mesma chegou, Alex desceu comigo.
–  Você pode me emprestar seu celular? O meu descarregou e eu não consigo falar com o meu amigo… é rápido, eu juro. 
– Deixa só eu pegar ele aqui e.. –  falei enquanto tirava um zilhão de coisas da bolsa procurando o celular. Encontrei e o entreguei, esperando que ele ligasse pro tal amigo.
Um barulho soou no bolso dele, que sorriu, agradeceu e me entregou o celular. Arqueei as sobrancelhas e ri quando percebi o que tinha acontecido. No o que ele já tinha se perdido no meio da multidão, eu recebi uma nova mensagem e fui ver o que era.
"Dia 19, no Quark’s Tavern. Espero que você esteja lá pra me dar apoio moral. ;)
Editar número. Salvar contato. Alex Band Guy. Confirmar.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Os Brooks

PRÓLOGO
O dia amanheceu frio em toda Londres, o que só era mais um dos motivos pra que os moradores do subúrbio que saíam para o trabalho logo cedo desejassem estar debaixo de cobertas e com suas portas trancadas. A Sra. Phelps estava como sempre em sua janela, — o asilo era um lugar seguro — encarando as gotas de chuva que caíam no chão, esperando que alguém passasse por ali com algum assunto novo para espalhar para suas colegas no próximo chá da tarde. A verdade é que a maior coisa que aconteceria seria um assalto. Talvez, dessa vez, nada muito sério. Talvez o prejuízo de uma bolsa barata e algum dinheiro. Nada incomum na área, ainda mais num tempo desses. Um dia antes em uma coletiva de imprensa o primeiro-ministro assegurou toda a população que o melhor que poderiam fazer era se refugiarem em suas casas, pois toda e qualquer pessoa que ficasse na rua depois das onze horas da noite corria grande perigo. A onda de mortes e sequestros que dominava a cidade era assustadora. Embora os presidentes de outros países não quisessem admitir, todas as autoridades locais garantiram; “O país não está tão seguro quanto antes.”. A questão é que se alguém podia concordar era a Sra. Phelps. Há tempos a velha alertava a população de que via uma nuvem negra levar toda felicidade do mundo. Talvez por esse motivo estivesse onde estava, o Abrigo para idosos St. Borzage, ou talvez o verdadeiro motivo fosse a ambição do filho por dinheiro, que conseguira a desculpa perfeita pra interditar a senhora de seus bens. Dois carros passaram cantando pneus na lama, e cinco vizinhos colocaram rapidamente o lixo pra fora. Depois disso a tarde seguiu tediosa. Pessoas passavam desconfiadas pela rua, com toda discrição que conseguiam. Todos com o passo apertado, olhando desconfiados para os lados como quem espera que um assaltante saia de dentro de uma lata de lixo. Marlene observava tudo, embora não tivesse muito pra ver. Ela mantinha a xícara de Earl Gray firme em suas mãos, assim como uma aranha mantém sua vítima presa em suas teias. Foi na esperança de que algo acontecesse que viu uma mulher bem vestida, com pele clara e longos cabelos escuros aparecendo no fim da rua estreita. Seu rosto não estava visível, já que o chapéu de marca impossibilitava a visualização de qualquer traço de sua face. Logo atrás da moça, vinha um homem alto e moreno, com uma cicatriz nos braços. Seu rosto (assim como o da mulher) estava oculto, e ele carregava uma maleta em suas mãos. “Parece que hoje teremos assunto” pensou Marlene, que acompanhava todos os movimentos do tão estranho casal com atenção. Os dois pararam no meio da rua, a cerca de oito metros de distância do asilo onde a senhora observava a cena com olhos famintos. “E agora vem a abordagem.” Pensou a velha com gosto. Mas a abordagem nunca veio. Não se tratava de um assalto. Era uma negociação.
 1. Uma cruel realidade
 A água que caía no chão fez um verdadeiro parque aquático na rua, que embora fosse calçada tinha várias partes irregulares. Os buracos, marcas de uma obra mal feita, agora estavam cheios de água, ocultos pra qualquer um que passasse em Victoria’s Street e desconhecesse a existência das famosas irregularidades no asfalto. Algumas pessoas ainda se arriscavam, muitas vezes caindo em um ou dois dos buracos d’água. Os moradores daquela velha rua não. Eles sabiam bem o que o descaso do governo com aquelas crateras em sua rua resultava: A filha de Emmeline Dixie tivera a infelicidade de cair num desses buracos perfeitamente ocultos. A garota teve um ferimento profundo em sua perna devido a algum instrumento cortante que ali se situava e passou dias sem conseguir andar sem sentir uma dor lascinante. Os moradores perderam a conta de quantas vezes jornais pequenos, na esperança de um dia virarem gigantes do mercado, ou até mesmo de gigantes do mercado e seus pequenos colunistas, visitaram a área pra mais uma reportagem sobre o governo e sua relação conturbada com a população mais pobre. Reportagem essa que gerava uma grande polêmica na semana, mas logo era esquecida, junto com as promessas que o assessor do responsável pelo setor de urbanização publicava em nota. Era quase um desafio pessoal dos jornais fazer com que o governo colocasse um asfalto descente naquela rua. Um desafio que parecia estar perdido. O fato é que todos estavam contando os dias pra saber em quanto tempo a moça que recentemente se mudara pra lá tirasse a câmera da bolsa e fizesse uma série impactante de fotos do local.  fora pra Londres em busca de emprego, assumindo o disfarce de Jornalista Investigativa. A pequena cidade em que nasceu na França não tinha oportunidades amplas no setor investigativo, a não ser que investigar o porquê as flores da Sra. Brynnhidlr estarem ficando murchas fosse um bom trabalho. Afinal, quem um dia cogitaria pensar que é porque a velha nunca as tratou direito? Talvez uma boa irrigação resolvesse. Talvez… Porém, mesmo que resolvessem, as tulipas da velha Brynnhidlr eram assunto pra outrora. O acontecimento do dia era a mudança da falsa jornalista pra o subúrbio de Londres. Ela tinha dinheiro. Ela podia morar numa cobertura, numa mansão ou em um apartamento requintado mas tinha decidido se mudar pra o subúrbio. O tópico virara o assunto favorito dos blogueiros de fofoca, que criavam postagens agressivas, com sugestões criadas para atrair o público. “O Império dos Mollison caiu?”, sugeria uma delas.